Ciúme enquanto Construção Cognitiva

O ciúme, frequentemente interpretado como uma resposta emocional instintiva ou reativa, é na realidade um fenómeno psicológico complexo que emerge da interação entre estruturas cognitivas profundas, normas internas e processos de pensamento disfuncionais. A sua manifestação não é aleatória, mas sustentada por padrões de funcionamento mental que se autoalimentam e reforçam, dificultando a autorregulação emocional e comprometendo o equilíbrio relacional.

No cerne deste sistema encontram-se as crenças centrais, entendidas como esquemas cognitivos nucleares que estruturam a perceção do self, do outro e das relações interpessoais. Estas crenças são frequentemente formadas em fases precoces do desenvolvimento e tornam-se automáticas e inconscientes, operando como lentes que distorcem a realidade. Quando negativas, estas crenças moldam uma visão autodepreciativa ou desconfiada do mundo relacional. Por exemplo, a convicção “eu não sou digno de ser amado” pode conduzir a interpretações distorcidas de comportamentos neutros do parceiro, ativando estados emocionais como insegurança, ansiedade e medo de abandono (Beck, 1979).

A estas crenças associam-se os chamados “livros de regras”, ou seja, sistemas normativos internos que regulam o comportamento, com base em pressupostos do tipo “se… então…”. Estas regras moldam expectativas sobre o si próprio, sobre os outros e sobre os relacionamentos, e, muitas vezes, impõem exigências irrealistas de perfeição, controlo ou previsibilidade. Afirmações como “se ele me ama, então nunca deve olhar para mais ninguém” ou “tenho de ser sempre interessante para manter a relação” ilustram como estas regras reforçam a vigilância relacional e a hipersensibilidade à ameaça. A” “transgressão”, real ou percecionada, dessas normas internas, pode desencadear reações emocionais desproporcionadas, alimentadas pela rigidez dessas mesmas normas (Young et al., 2003).

Para além destas estruturas, os processos cognitivos de preocupação e ruminação desempenham um papel fundamental na manutenção do ciúme. A preocupação refere-se à antecipação de cenários futuros negativos, enquanto a ruminação se foca na análise repetitiva de acontecimentos passados ou presentes, frequentemente com um tom autocrítico ou catastrofista (Nolen-Hoeksema et al., 2008). Ambos os processos compartilham uma natureza repetitiva e intrusiva e são mantidos por crenças metacognitivas disfuncionais, como “se eu me preocupar, estarei preparado” ou “só poderei resolver isto se continuar a pensar no assunto”. Embora tendam a intensificar o sofrimento emocional, são erroneamente percebidos como estratégias de resolução ou proteção.

No contexto do ciúme, a preocupação pode emergir na forma de pensamentos do tipo “e se o meu parceiro conhecer alguém melhor?”, ao passo que a ruminação se pode traduzir em questões como “porque é que ele não respondeu com o mesmo entusiasmo?”. Este padrão de funcionamento cognitivo impede a avaliação realista dos factos, amplifica a perceção de ameaça e reforça as crenças disfuncionais subjacentes. Simultaneamente, conduz a comportamentos de verificação, controlo e questionamento excessivo que, paradoxalmente, podem acabar por deteriorar a relação e confirmar os receios iniciais do sujeito.

Esta interação entre crenças, normas internas e processos de pensamento cria um ciclo autorreforçado. Um sujeito que acredita não ser digno de amor (crença central) pode reger-se por uma regra interna do tipo “tenho de ser perfeito para manter a relação”. Diante de uma resposta menos entusiástica do parceiro, inicia um processo de preocupação (“e se ele já não estiver interessado?”) e ruminação (“o que fiz de errado?”), culminando em comportamentos ansiosos que são sentidos pelo outro como sufocantes ou invasivos. A eventual reação de afastamento do parceiro reforça, então, a crença original de não ser amado, perpetuando o ciclo.

A intervenção psicológica centrada no ciúme exige, portanto, uma abordagem que reconheça e trabalhe estas dimensões. A psicoterapia cognitivo-comportamental tem demonstrado eficácia na identificação e reestruturação de crenças centrais, na flexibilização de regras internas disfuncionais e na redução de processos ruminativos e de preocupação crónica. Estratégias como a terapia dos esquemas, a terapia baseada na aceitação e compromisso e a terapia cognitiva baseada no mindfulness têm igualmente evidenciado benefícios na abordagem destes padrões (Segal et al., 2013; Young et al., 2003).

A promoção da autoconsciência emocional, da aceitação da incerteza relacional e do desenvolvimento de normas mais realistas e compassivas constitui um caminho essencial para quebrar o ciclo do ciúme patológico. O objetivo não é eliminar o ciúme — uma emoção humana compreensível —, mas sim compreender a sua génese interna e desativar os mecanismos cognitivos que o exacerbam e o tornam disfuncional. O ciúme, longe de ser uma resposta instintiva inevitável, é o resultado de uma arquitetura mental complexa que pode ser compreendida, desconstruída e transformada. Ao intervir nas crenças, nas regras e nos processos de pensamento que o sustentam, abre-se a possibilidade de promover relações mais seguras, equilibradas e emocionalmente saudáveis.


Referências Bibliográficas:

Beck, A. T. (1979). Cognitive therapy and the emotional disorders. Penguin.

Nolen-Hoeksema, S., Wisco, B. E., & Lyubomirsky, S. (2008). Rethinking rumination. Perspectives on Psychological Science, 3(5), 400–424. https://doi.org/10.1111/j.1745-6924.2008.00088.x

Segal, Z. V., Williams, J. M. G., & Teasdale, J. D. (2013). Mindfulness-based cognitive therapy for depression (2nd ed.). Guilford Press.

Young, J. E., Klosko, J. S., & Weishaar, M. E. (2003). Schema therapy: A practitioner’s guide. Guilford Press.

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